O cancelamento do CPF em caso de fraudes reiteradas é medida excepcional. Contudo, comprovada a existência de prejuízo ao contribuinte, é possível mudar o CPF para um novo número.
O Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) é, hoje, muito mais do que um simples número de identificação fiscal. Ele é a chave de acesso para todos os serviços públicos e privados, identificação civil e vínculos obrigacionais. Por tal razão, sua utilização indevida, especialmente por meio de fraudes perpetradas por terceiros com o objetivo de obter vantagens indevidas, pode causar danos profundos e contínuos às vítimas.
Nesse contexto, ganha destaque a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 2.172/2024 que trata, entre outros pontos, do cancelamento judicial do CPF em situações excepcionais, como as de fraudes reiteradas.
Primeiramente, a instrução normativa, ressalta a importância do CPF ao destacar, logo em seu primeiro artigo, especificamente, em seu §2°, que: “à pessoa física inscrita no CPF é atribuído um identificador único, vedada a concessão de mais de um número para a mesma pessoa, denominado número de inscrição no CPF – NI-CPF.” Tal dispositivo, reforça a ideia de que o procedimento de cancelamento do CPF, seja pela via administrativa ou judicial, deve ser uma medida excepcional, visto a importância deste número para a identificação e celebração de negócios jurídicos pelas pessoas.
Antes de adentrarmos detalhadamente no cancelamento do CPF de ofício por determinação judicial, tema principal do presente artigo, é importante informar que o cancelamento de ofício também pode ser realizado quando há a atribuição de mais de um número de inscrição para uma mesma pessoa ou, ainda, por determinação administrativa, conforme se verifica no art. 17 da Instrução Normativa nº 2172 de 2024.
É evidente a inovação da norma inova ao trazer previsão expressa de cancelamento do CPF por decisão judicial, tratando-se de importante medida para lidar com casos extremos, em que o uso indevido do número por criminosos que objetivam obter vantagens ilícitas, torna insustentável a manutenção do documento, por gerar prejuízos em grande escala ao cidadão que, por vezes, pode ser impedido de realizar atos da vida civil pela utilização inadequada.
O cancelamento de CPF pela via judicial, na prática, pode ser crucial em situações em que o cidadão, mesmo após registrar boletins de ocorrência, ações cíveis e penais, bem como realizar tentativas administrativas de evitar o uso indevido do seu cadastro, continua a sofrer prejuízos decorrentes do uso fraudulento de seu CPF.
O Judiciário, ao constatar a irreversibilidade dos danos ou a inutilização prática do número em razão de reiteradas fraudes, pode determinar o seu cancelamento e, também, por meio de uma decisão judicial a atribuição de um novo número. É o que se vê, por exemplo, em casos em que a vítima tem crédito sistematicamente negado, é cobrada por dívidas que não contraiu, responde à processos de execução indevidos ou se depara com a utilização de seus dados na perpetração de outros golpes.
A jurisprudência pátria está de acordo com o estabelecido na instrução normativa, visto que há julgamentos favoráveis nos Tribunais Federais, no sentido de determinar o cancelamento do CPF e a atribuição de novo número quando for comprovado que está sendo indevidamente utilizado por terceiros.
Contudo, a medida não está isenta de ressalvas. Dada a já citada relevância do cadastro de pessoa física, o seu cancelamento judicial deve ser compreendido como absolutamente excepcional, dada a sua repercussão sistêmica. Afinal, o número do CPF está vinculado à históricos fiscais, previdenciários, bancários, eleitorais e às diversas transações privadas. A atribuição de um novo número, ainda que tecnicamente possível, pode causar rupturas e prejuízos adicionais, especialmente em sistemas que não reconhecem ou integram o novo cadastro automaticamente, o que traz ao cidadão o ônus de informar a alteração para que seja possível atualizar todos os documentos que forem necessários.
Além disso, a responsabilização do Estado e das instituições privadas que alimentam seus sistemas com dados fraudulentos precisa ser considerada. É razoável impor ao cidadão a troca de seu documento, com todas as implicações que isso acarreta, enquanto o aparato de controle e verificação de identidade nas instituições permanece ineficaz? A troca do CPF, por si só, não soluciona o problema estrutural da fraude, apenas desloca a grande consequência deste para a vítima.
É certo que a Receita Federal do Brasil acerta ao estabelecer procedimentos e formas de correção do registro em sua Instrução Normativa. Entretanto, é indispensável que o Judiciário, ao deferir esse tipo de pedido, fundamente a real impossibilidade de manutenção do CPF original, com base em provas que efetivamente demonstrem os prejuízos sofridos pela vítima em razão da utilização indevida.
Neste cenário, é imprescindível refletir sobre a adoção de medidas alternativas e anteriores ao cancelamento judicial do CPF. Tais ações poderiam ser estruturadas a partir de um cenário que priorize a segurança na guarda e no tratamento dos dados pessoais pelas instituições públicas e privadas. Em vez de apenas reagir à fraude consumada, os sistemas poderiam prever mecanismos preventivos, como a emissão de alertas eficazes vinculados ao CPF quando identificado uso suspeito ou divergente do padrão. Essa sinalização, atrelada ao número que está sendo indevidamente utilizado, poderia identificar os verdadeiros responsáveis pelas fraudes e, ao mesmo tempo, proteger o titular legítimo. Trata-se de uma solução menos invasiva, mas potencialmente eficiente, que preservaria a integridade do número de CPF e reduziria os danos à vítima, ao mesmo tempo em que fortaleceria a cultura de prevenção no combate às fraudes.
Portanto, o cancelamento judicial do CPF deve ser visto como uma ferramenta de última hipótese, cabível apenas quando esgotadas todas as demais possibilidades de proteção da vítima. Trata-se de um avanço normativo relevante, que reconhece a gravidade dos efeitos das fraudes documentais no Brasil, mas que exige aplicação criteriosa, ponderando os impactos de longo prazo e a responsabilidade compartilhada entre Estado, instituições e cidadãos.
Fontes:
Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 2.172/2024 (disponível em: https://normasinternet2.receita.fazenda.gov.br/#/consulta/externa/135611)
Tribunal Regional Federal da 1ª Região TRF-1 – APELAÇÃO CIVEL: AC 0004401-76.2016.4.01.3602 (disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trf-1/1664647876)