Cotas Condominiais e a Orientação do STJ

CARNAÚBA e REINIG, citando SANFILIPPO, ressaltam que:

o  condomínio  é  a  mãe  dos  conflitos”(communio est mater rixarum). E nenhuma questão é mais propensa a gerar conflitos em um  condomínio  do  que  o  problema  das  despesas  condominiais  ou,  mais  precisamente,  o problema gerado pela falta de pagamento dessas despesas nos denominados condomínios edilícios.

Nesse contexto de conflitos, as disputas sobre a responsabilidade pelo pagamento das cotas condominiais é tema de frequentes debates na doutrina e na jurisprudência no mundo todo, que não conseguiu estabelecer até hoje um conceito adequado para as obrigações propter rem, que, em síntese, significam as prestações devidas pelo titular de um direito real, ou seja, que está atrelada a determinada coisa, que provém de determinada coisa.

Nos termos do artigo 1.345 do Código Civil “O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios.”. Assim, o conceito de obrigação propter rem situa-se em uma zona de intersecção entre o direito obrigacional e o direito real.

Apesar de sua relevância, a doutrina aponta que a legislação brasileira não estabeleceu um regime jurídico unificado para as obrigações propter rem, sendo o conceito amplamente construído pela jurisprudência e pela doutrina.

Nesse sentido, a teoria da dualidade do vínculo obrigacional foi muito bem tratada no paradigmático Acórdão da lavra do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no REsp n. 1.442.840 – PR (2014/0060222-0), ao ressaltar a origem nas teses desenvolvidas por Alois von Bekker e Ernst Immanuel Brinz e aperfeiçoada por Von Gierke. 

Esta teoria propõe a decomposição da obrigação em dois elementos: débito (schuld) e responsabilidade (haftung). No contexto das despesas condominiais, tal decomposição permite compreender que:

a) O débito (schuld) — o dever de prestar — deve ser imputado a quem efetivamente se beneficia dos serviços prestados pelo condomínio, ou seja, a quem exerce a posse direta e usufrui dos bens comuns. Aplica-se aqui o brocardo latino “ubi commoda, ibi incommoda” (onde estão os proveitos, aí estão os encargos).

b) A responsabilidade (haftung) — a sujeição do patrimônio aos meios executivos de satisfação da dívida — persiste ao proprietário registral, que mantém sua posição jurídica como titular do direito real, mesmo não exercendo a posse direta.

Isso posto, a aplicação da natureza propter rem gerou intensa controvérsia no STJ, especialmente nos casos de compromisso de compra e venda não levado a registro, onde a titularidade formal (proprietário registral/promitente-vendedor) e a posse (promissário-comprador) se encontram dissociadas.

Na mais recente decisão sobre a matéria, de 24/04/2025,  atrelada principalmente ao aspecto processual da cobrança de cotas condominiais, no julgamento do Recurso Especial n. 1.910.280, Segunda Seção, de Relatoria Min. Maria Isabel Gallotti, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou a legitimidade passiva concorrente entre vendedor e comprador para responder à ação de cobrança de taxas de condomínio posteriores à imissão do comprador na posse do imóvel, na situação em que o contrato não tenha sido registrado em cartório.

O intuito da decisão, pelo que se extrai das suas razões de decidir é justamente “não esvaziar o caráter propter rem das dívidas condominiais”. Dessa forma, entendeu o STJ que o condomínio credor das cotas condominiais não pode ficar sujeito à livre estipulação contratual de terceiros para extinguir uma obrigação que decorre do vínculo com a coisa.

Nesse sentido, é possível afirmar que, a partir do julgamento do REsp n. 1.910.280, o STJ acrescentou uma nova camada de discussão sobre o Tema Repetitivo 886, especificamente sobre a alínea “c” da mencionada tese, que possui o seguinte teor:

c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador.

Ademais, a penhora do imóvel em fase de cumprimento de sentença, ainda que o proprietário não tenha figurado na fase de conhecimento, segundo o quanto decidido pelo STJ, é possível em razão da mencionada natureza propter rem da dívida exequenda.

Ao final da decisão, a Segunda Seção do STJ, não obstante a interpretação dada sobre a responsabilidade pela dívida condominial, assegurou que os bens particulares do proprietário (promitente vendedor) ficam a salvo de eventual constrição judicial caso não tenha sido parte da fase de conhecimento da ação.

Em que pese a proteção à coletividade condominial dada pela recente decisão, o STJ não deixou de registrar mecanismos de defesas do proprietário, o qual pode, eventualmente, discutir a dívida no próprio cumprimento de sentença ou por meio de ação autônoma.

Neste contexto, é possível afirmar que as despesas condominiais constituem obrigações propter rem, vinculadas automaticamente à coisa, não podendo ser extintas por mera disposição de vontade das partes contratantes. No mesmo sentido, a responsabilidade é concorrente entre proprietário registral e possuidor, podendo o condomínio dirigir a execução contra qualquer deles, com prioridade àquele que mais prontamente puder satisfazer a obrigação.

O registro na matrícula estabelece nexo jurídico material determinante, não sendo necessário comprovar posse ou ciência inequívoca do condomínio quanto à transferência para responsabilizar o proprietário registral.

A orientação do STJ reforça a teoria da dualidade do vínculo obrigacional e oferece solução satisfatória, distinguindo entre débito (imputável ao beneficiário dos serviços) e responsabilidade (inerente ao proprietário), preservando a natureza propter rem.

Não obstante os possíveis prejuízos advindos desta decisão, como a possibilidade do promitente vendedor tomar conhecimento de ação de cobrança muitos anos após ter vendido o bem, mas não levado a registro, o STJ ressaltou que existem garantias processuais essenciais para que o proprietário não demandado originariamente possa exercer defesa adequada, inclusive com limite da constrição ao imóvel gerador da dívida.

Assim, a solução jurisprudencial harmoniza interesses legítimos: protege o condomínio garantindo satisfação de seus créditos, estimula o cumprimento de obrigações e preserva segurança jurídica no sistema de transferência imobiliária.

Belo Horizonte, 30 de outubro de 2025.

Marcelo Marques C. T. R. da Silveira

OAB-MG 205.436

Referências:

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.910.280/PR. Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 03/04/2025, DJe 24/04/2025. 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.442.840/PR. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento: 6 ago. 2015. Publicação: 21 ago. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.345.331/RS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 08/04/2015, DJe 20/04/2015.

CARNAÚBA, Daniel Amaral; REINIG, Guilherme Henrique Lima. O regime das obrigações propter rem e as despesas condominiais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 1–47, 2018. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/339. Acesso em: 30 out. 2025.

SANFILIPPO, Cesare. Instituzioni di Diritto Romano. 10. ed. Soveria Mannelli: Rubbettino editore, 2002, p. 201, nº 138, apud CARNAÚBA, Daniel Amaral; REINIG, Guilherme Henrique Lima. O regime das obrigações propter rem e as despesas condominiais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 1–47, 2018.

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